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- DE MARRÉ DE SI | Josias Leonardo
Publicado por: Unknown
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
por Josias Leonardo
Estava na aula da professora V., de linguística, e falávamos sobre as
brincadeiras que algumas crianças cantavam antigamente, entre muitas. Fazíamos a
leitura de um livro sobre a história dos almanaques no Brasil,de Margareth
Park, muito interessante. E começamos a falar sobre essas brincadeiras de
infância. Não era como as crianças de hoje, que ficam horas e horas brincando
no computador, ipads e similares, nos jogos como GTA, MMORPG, entre tantos. Uma
prisão.
Na rua em que eu morava, as crianças brincavam o tempo todo na rua,
raramente ficavam em casa, era uma festa só. Principalmente se estava aquele
sol lindo, aquela tarde prazerosa, aquela beleza toda. Nessa mesma rua havia uma família bem pobre, mais pobre do que alguns de
nós, mas era uma família de caráter firme, de muito respeito. Não que pobre
seja de mau-caráter, mas é só para enfatizar o jeito deles de ser. Se me
lembro havia três crianças, duas mulheres e um homem, fora o pai, não lembro da
mãe. A mais velha das filhas era bem ativa, muito inteligente. Era a líder
nas brincadeiras com as meninas. Uma brincadeira que ela adorava era uma
que sempre ela cantava, que dizia:
Eu sou pobre, pobre, pobre
De marré, marré, marré
Eu sou pobre, pobre, pobre
De marré de si
Eu sou rica(o), rica(o), rica(o)
De marré, marré, marré
Eu sou rica(o), rica(o), rica(o)
De marré de si...
O tal marré, e marré de si, não importa como se escreva, é só uma
transliteração onomatopeica sem sentido, já que essa canção é uma adaptação abrasileirada
duma canção-de-roda francesa:
"je suis pauvre, pauvre, pauvre, je m'arrête, m'arrête, m'arrête, je suis riche riche riche, je m'arrête ici."
Ela saía cantando e dançando com uma graça fenomenal. Era muito
talentosa. Ficava fascinado com o talento dela, sua impetuosidade, que agora me
lembra o talento de Fernanda Montenegro, tamanha era sua capacidade. Era
ainda uma criança de poucos mais de 11 anos, mas que capacidade! Mesmo quando
ela cresceu mais, continuou brincando, pois as adolescentes agiam mais como
crianças do que como meninas dessa idade. Era ela que reunia todas para brincar, e
a gente, os meninos, ficávamos vendo aquele teatro ao ar livre. Eu não sabia o
que era teatro, claro, mas ficava admirando seu trejeito, sua eloquência, tudo.
De alguma forma aquilo me encantava, não sei porque. O que era marcante nela,
era que ela não só brincava, ela encenava mesmo, encarnava o personagem da
brincadeira. Que lindo. Muito pouco se falava em namoro, em engravidar, era
outra época mesmo. Não sei por que razão sempre me lembro dela e suas
brincadeiras. Não era só essa brincadeira que elas brincavam, mas todas elas
tinha o toque genial dessa garota, ela amava o que fazia, não parecia que
estava brincando, parece que estava num palco. Eu me deliciava admirando seu
jeito singular de brincar. Talvez gostasse dela.
Nem sua pobreza impedia de sua alegria irradiar para todos. Ela era como
uma luz, que iluminava todos nós e afastava a tristeza. Até os garotos
as vezes, entravam na brincadeira, embora depois fosse ridicularizado
pelos outros. E havia um lá que sempre brincava, e não tinha nenhum trejeito,
era muito esperto, isso sim. Ele queria era ficar mo meio das meninas, curtindo
tudo. Naquelas tardes ensolaradas, era a hora que ela usava para esquecer as
agruras da pobreza, as dificuldades do dia a dia, a falta de dinheiro de seu
pai, e se entrega à alegria, ao êxtase, ao glamour.
Belos tempos, aquele. Não sabia que estava presenciando um teatro de
alta qualidade, e ao ar livre, naquelas tardes maravilhosas, quando um talento
despontava, e que que, se fosse descoberta, iria ser uma luz ofuscante na
constelação da dramaturgia brasileira. Fica, então a outra parte:
Eu sou rica(o), rica(o), rica(o)
De marré, marré, marré
Eu sou rica(o), rica(o), rica(o)
De marré de si...