Publicado por: Unknown quinta-feira, 26 de setembro de 2013



O relógio marcava cinco horas da manhã e os primeiros raios de sol atravessavam a janela do quarto onde Antônio já se encontrava acordado. A verdade é que ele não havia pregado o olho durante toda a noite. 
Com muita dificuldade, ele torceu o corpo para o lado de fora da cama e segurou a cabeceira com o máximo de força permitida a alguém no seu estado de saúde. Sentou-se e um suor frio escorreu dos cabelos ruivos até a barba escassa e grisalha. 
     Antes de levantar-se, ele observou as poucas coisas que lhe restaram, entre elas: dois livros, um vaso de planta, que há tempos não floresce, e uma carta guardada, amarrotada e, durante anos, esperada. Foi tomado, mais uma vez, por sentimentos e lembranças do passado, até que foi interrompido. 
– Bom dia, seu Antônio! Já está de pé? Então vamos lá, já está na hora!
Ele estendeu as mãos pedindo ajuda para se levantar, a jovem franzina impulsionou o homem para fora da cama e o conduziu a uma espécie de ambulatório, que fica ao lado dos dormitórios. 
- De novo? Toda semana eu venho pra cá...
- Fique tranquilo, são exames de rotina. Ordens médicas, seu Antônio, ordens médicas!
Na manhã em que completava 70 anos, Antônio não sentia forças e, nem mesmo, disposição para contrariar a jovem que estava ali para cuidar de dezenas de vidas que, antes de se tornarem velhos, doentes, abandonados e até mendigos, tinham uma vida. 
- Temos que dar graças a Deus por viver num lugar como esse, pois se vivêssemos numa tribo primitiva, com os problemas de saúde que temos, estaríamos condenados a morrer asfixiados depois de sermos enterrados vivos. – disse Durval, um homenzarrão, que chegou amparado por um enfermeiro, para receber medicamentos paliativos para combater uma asma crônica, resultado de anos dedicados ao fumo. 
- Você é um velho esclerosado e não sabe o que diz. Você ainda não percebeu que isso aqui não passa de uma condenação disfarçada de caridade? – contestou Antônio. 
O caminhar vacilante deste funcionário público aposentado afrontam a imagem do homem forte que dedicara sua vida ao trabalho e à família, formada pela esposa e o único filho, que viajou a trabalho para outro estado e nunca mais deu sinal de vida.
     Depois de serem avaliados pela equipe médica Antônio e Durval se unem a outros moradores da Casa da Esperança, localizada na Rua da Amizade, s/n, em um bairro do Recife. Pelos corredores, ele vai encontrando aqueles que com mais dificuldade se arrastam até a sala principal do velho casarão.
- Rapazes, me esperem. – disse a senhora que caminha com a ajuda de muletas conhecida por Dorinha. Ela mora na casa desde que ficou viúva e os filhos disseram não ter condições de cuidar dela naquele momento. 
- Ande, vamos logo! Você não sabe que aqui temos hora pra tudo. Hora pra acordar, hora pra comer, hora pra tomar banho, hora pra dormir... – respondeu Antônio. 
 O café da manhã naquele dia era especial. Antônio não sabia, mas haviam preparado uma surpresa para comemorar seu aniversário. Dorinha e as outras mulheres prepararam o bolo, que estava à espera do aniversariante junto com os demais moradores. 
Ao entrar na sala onde sempre é servido o café da manhã, um grande coral de vozes entusiasmadas, embora trêmulas, o receberam. Antônio olhou vagarosamente para todas aquelas pessoas como se tentasse reconhecer em alguma delas um rosto familiar que há muito tempo desejara rever. 
Ele franziu a testa, que mais uma vez ficou encharcada de suor, e apertou os olhos castanhos e profundos, em busca daquele que traria de volta o bem-estar, perdido pelos cômodos daquela casa. Mas foi em vão! 
Antônio sentiu a carta imprensada entre os dedos velhos e rígidos que se apoiavam no bolso da calça. Nela estava a frase que alimentou durante meses a sua esperança: “Pai, estou voltando!” Como a melodia de um disco gasto e arranhado, aquelas três palavras se repetiam e ecoavam, aumentando a expectativa dele.
No entanto, em poucos minutos, um gosto amargo tomou conta do paladar de Antônio e a alegria deu lugar à desesperança. O coração, que batia acelerado, voltou ao ritmo lento e descompassado. Ele teve a certeza de que não passava daquele dia. “Não tenho mais motivos para esperar”, pensou. 
Constrangido e sem compartilhar da alegria que era expressa por todos que o cercavam, Antônio aceitou a ajuda do homem de sorriso largo que se aproximou dele e lhe cumprimentou como um velho conhecido. Antonio não o reconheceu e pensou que fosse mais um daqueles voluntários bonzinhos que apareciam nos dias de visita para fazer companhia aos velhinhos dementes, cujas memórias não lhe permitiam lembrar sequer se já haviam tomado o punhado de remédios, há cinco minutos. 
- Ajude-me a chegar ao meu quarto. Não me sinto bem! – disse Antônio, segurando forte nas mãos que há mais ou menos 40 anos agarravam com medo as barras de suas calças.
Os homens seguiram juntos como dois amigos que tinham muito que conversar. Os convidados da festa acompanharam quietos os movimentos dos dois que caminhavam semelhantemente com os ombros caídos e os passos curtos como se abrissem passagem numa estrada coberta por matos. 
Numa inversão de papéis que só a vida é capaz de proporcionar, sentado na cama, o homem mais novo contará histórias para o mais velho, até o momento em que este, aliviado, decidirá a hora de dormir.



[ 2 comentários... ]

  1. O conto parece retratar bem uma certa realidade. Bom.

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    1. É verdade, Josias! Podemos dizer que este conto é baseado em fatos reais. Neste caso, a arte imita a vida!

      Abraços,
      Manu.

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